‘De Salto Alto’ – os 30 Anos de um Pedro Almodóvar Não muito Badalado

Paulo Boaventura
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O cineasta espanhol Pedro Almodóvar é um verdadeiro fenômeno. Almodóvar é um destes artistas cuja marca se comprovará eterna e atemporal, ecoando pelos tempos assim como os maiores ícones mundiais da sétima arte. E não me refiro à indústria de Hollywood. Nomes clássicos do cinema cosmopolita e globalizado como Akira Kurosawa, Luis Buñuel, Ingmar Bergman e Federico Fellini ajudaram a moldar a arte cinematográfica com seus estilos únicos, trabalhando em seus respectivos países, como o Japão, a Espanha, a Suécia e a Itália. É de se admirar um artista que atinge tamanho prestígio ainda em vida e sem muita ligação com a imensa vitrine que é o cinemão norte-americano.

Pedro Almodóvar é o rosto mais pulsante do cinema espanhol na atualidade – dono de um estilo único de cores vibrantes e ardentes. E uma narrativa (a maioria saída de sua mente questionadora e provocativa) que mescla com maestria o folhetim novelesco (típico do sangue mais “latino” dos europeus) com a barbárie cotidiana de nosso mundo, trabalhando o surreal de forma tão crível que não deixa dúvida sobre a autenticidade dos fatos apresentados. Em sua carreira de quase cinco décadas, Almodóvar nos brindou com visitas à sua mente em 22 longas-metragens e tantos outros curtas (estilo de cinema que continua a visitar até hoje).

Um jovem Almodóvar, aos 41 anos, dirige suas musas Victoria Abril (à esquerda) e uma loira Marisa Paredes (à direita) em seu décimo filme.

Em 2021, Almodóvar estreará no Festival de Veneza sua mais recente produção, Madres Paralelas, sobre a relação de duas mulheres que dão à luz no mesmo dia – uma delas sendo a atual musa do cineasta, a amiga Penélope Cruz (em sua sétima colaboração com o cineasta). Além da estrela espanhola, Almodóvar revelou talentos como Antonio Banderas e Javier Bardem, além de impulsionar internacionalmente conterrâneas como Victoria Abril, Marisa Paredes e Carmem Maura ao longo de sua filmografia. Voltando um pouco no tempo, 30 anos no passado, Almodóvar, que já era um diretor renomado, estreava seu décimo filme nas telonas, longe de badalações dos circuitos de grandes Festivais. De Salto Alto (1991) completa 30 anos de seu lançamento em 2021 e viveu para se tornar um dos longas menos comentados da carreira do cineasta. Aqui iremos dar uma nova olhada neste drama com doses de suspense sobre o relacionamento conturbado entre mãe e filha.

Uma mãe egocêntrica em busca de seus sonhos (à direita) e uma filha em busca de aceitação (à esquerda) é o que move ‘De Salto Alto’.

Em 1991, Pedro Almodóvar já havia estado no topo do mundo. Isso porque seu oitavo filme da carreira se tornava também o mais badalado até então e o que iria servir para seu reconhecimento mundial. Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, de 1988, escalava até a honraria máxima da sétima arte ao receber a indicação de melhor filme estrangeiro no Oscar. Logo, todos sabiam quem era Pedro Almodóvar e é seguro dizer que a produção foi a grande responsável por isso, pairando em sua carreira como divisor de águas. Assim, apesar de muitos anos de estrada, Pedro Almodóvar agora era um cineasta de renome internacional, para o qual todos estavam olhando e esperando seu próximo trabalho. Sem perder tempo em aproveitar o hype gerado, o diretor lançava logo no ano seguinte Ata-me, uma subversão dos filmes de terror onde o vilão termina com a mocinha. Tudo, é claro, construído de forma lúdica como só o cineasta é capaz de fazer, humanizando um criminoso e romanceando seu abuso com a vítima. Nem é preciso dizer que Ata-me surgia como obra mais chocante de Almodóvar, responsável por inúmeras polêmicas – entre elas a criação de uma nova classificação na censura norte-americana. Escrevi sobre Ata-me ano passado, tentando jogar uma luz em como o filme se comporta hoje – texto que você pode conferir neste link ou abaixo.

Leia também: Os 30 Anos de ‘Ata-me’ | Como se Comporta Hoje a Síndrome de Estocolmo de Pedro Almodóvar?

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Depois da polêmica em ‘Ata-me’, Almodóvar “pega mais leve” em ‘De Salto Alto’.

Ata-me foi uma panela de pressão que trouxe novamente os holofotes para Almodóvar, para o bem e para o mal. Assim, como trabalho seguinte, o espanhol optava por algo mais “ameno”, isto é, para os seus padrões – ainda bem provocativo para o resto. Para a tarefa de concretizar sua nova obra, o diretor se reunia à sua então musa Victoria Abril (a “Penélope Cruz da época”). E se em Ata-me, Abril era a vítima subjugada de Antonio Banderas, em De Salto Alto Almodóvar a convidava para bater bola com uma das primeiras damas da dramaturgia espanhola, a veteraníssima Marisa Paredes, numa história sobre um novo relacionamento abusivo, desta vez um mais psicológico e entre mãe e filha.

Paredes, que havia estreado em sua parceria com Almodóvar no papel de uma freira em Maus Hábitos (1983), retomava a colaboração com o cineasta agora com uma personagem bem diferente: a egocêntrica Becky del Páramo. Como de costume nos filmes do diretor, a trama sempre envolve de uma forma ou outra personagens inseridos no mundo das artes, em especial o cinema. Em De Salto Alto, Becky (Paredes) é uma mulher em busca do sonho de se tornar atriz, mesmo que para isso precise negligenciar a filha pequena e deixa-la para ser criada pelo pai. Existe o ditado que para perseguirmos nossos sonhos precisamos ser um pouco egoístas, e numa sociedade patriarcal e machista onde o que temos muitas vezes são filhos sem pai, o abandono por parte da mãe ainda causa estardalhaço e mal estar – sem dúvida bem mais do que quando o homem o faz.

Marisa Paredes é Becky, uma verdadeira estrela dos palcos buscando se reconectar com a filha em ‘De Salto Alto’.

Becky atinge o estrelato, mas é na música, como musa pop. De Salto Alto é a história sobre o reencontro desta mãe ausente, pronta para se reconectar com sua filha adulta, a qual sempre buscou a atenção da genitora. No duelo dramático de grandes atrizes, Victoria Abril é Rebeca Giner, a filha de Becky (Paredes), que se tornou apresentadora de um telejornal. Abalada psicologicamente pelo desdém da mãe, a jovem mulher faz de tudo para chamar sua atenção, até mesmo casar com seu antigo amante. Assim, mãe e filha possuem algo em comum, ambas estiveram nos braços de Manuel (Féodor Atkine). Becky teve um tórrido caso com o sujeito quando ele era um jornalista querendo entrevista-la, e como forma de provocar a mãe, Rebeca casou-se com ele anos depois, agora o diretor de uma grande rede de TV, que prontamente a colocou como apresentadora de um famoso noticiário.

Tudo muda quando Manuel é assassinado e De Salto Alto se transforma em um thriller whodunit – um suspense no qual uma investigação aponta para diversos suspeitos. Além de mãe e filha, a polícia investiga também Isabel, a tradutora de libras (a linguagem de sinais para surdos-mudos) – uma performance rouba-cenas da carismática Miriam Díaz-Aroca (dona das cenas mais engraçadas e melhores tiradas) – com quem Manuel igualmente teve um caso. Temos ainda o personagem duplo (ou triplo) de Miguel Bosé (o Mark do Suspiria original), que será facilmente identificável para os mais atentos, e uma participação pequena de um Javier Bardem em início de carreira como um técnico do canal de TV.

Miriam Díaz-Aroca (à direita) rouba cenas e crias os momentos mais engraçados de ‘De Salto Alto’ como a tradutora Isabel.

Talvez o maior problema que De Salto Alto enfrente seja sua ambição de roteiro. O cerne do longa obviamente é a relação entre mãe e filha, cujo título faz menção à ambas as mulheres terem o barulho de saltos se aproximando da janela da casa de porão onde cresceram como ponto alto de esperança que suas mães estivessem retornando. É dito inclusive que a tradução “High Heels” no mercado americano terminou prejudicando seu desempenho no país, por muitos terem associado o título a uma possível comédia sobre o mundo da moda. De Salto Alto – cuja tradução literal do espanhol seria “Saltos Distantes” – não poderia ter uma trama mais antagônica a isto.

Quem sabe visando não ter unicamente em mãos um melodramalhão barato, Almodóvar tenha acrescentado suas excentricidades costumeiras ao roteiro. E elas são sempre bem-vindas. Mas no decorrer da projeção, muitos destes trechos soam desconexos e episódicos. Entre outras coisas, Rebeca (Abril) vai parar na prisão pelo assassinato do marido, e assim De Salto Alto se torna uma história sobre cárcere feminino, com direito à entrada de cena de Cristina Marcos, vivendo a personagem Paula, que mesmo tendo menos de cinco minutos em tela, saiu da obra com uma indicação de atriz coadjuvante no Goya, o Oscar da Espanha.

Almodóvar brinca ao transformar num musical com dança o trecho da prisão feminina em ‘De Salto Alto’.

Vindo de Almodóvar as tais cenas são interessantes e escandalosas. Em especial um trecho logo de início em que a rígida Rebeca (Abril), dona de muitos problemas emocionais, é arrebatada pelo sexo selvagem de seu colega Letal, um travesti num espetáculo que homenageia a mãe dela. A cena é Almodóvar em sua mais pura forma: despeitado, sem papas na língua e extremamente excitante. Esse tal personagem irá se ligar mais adiante na trama com Juez, um investigador que cuida do caso de assassinato do marido de Rebeca.

Ao contrário de outros longas de Almodóvar, De Salto Alto traz muito à luz estes desvios, que disputam a atenção no filme com a trama central e que deveria ser o cerne absoluto, a citada relação entre mãe e filha. Aqui, as peças se movem por conta própria e parecem desconexas do todo. De Salto Alto poderia ter chamado mais atenção caso fizesse uso de Antonio Banderas, como planejado originalmente, no papel que ficou com Miguel Bosé, atraindo os fãs que quisessem ver repetida a dobradinha de Ata-me entre o ator e Victoria Abril. Banderas, no entanto, recusou o convite do amigo para ir estrelar Os Reis do Mambo (1992), da Warner, um dos responsáveis por sua entrada no mercado norte-americano.

Almodóvar há 30 anos já ousava a colocar nos holofotes a comunidade LGBTQ+ em ‘De Salto Alto’.

Como resultado, De Salto Alto se tornou um “filme menor” de Pedro Almodóvar, um destes filmes de cineastas tarimbados que não costumam ser muito mencionados nas rodinhas de fãs e cinéfilos. Seja como for, não foge do contexto de tópicos que o cineasta tanto gosta de abordar e ainda reserva espaço em suas entrelinhas, mesmo de forma esparsa, para discutir a comunidade LGBTQ+ e seu espaço na sociedade, ao dar ênfase a uma cena musical completa com a apresentação de Letal, e logo após trazer o debate argumentativo entre o próprio e o homofóbico Manuel. Isso há 30 anos no passado. Almodóvar não por acaso é tido como pilar representativo de gênero em seu cinema. E sempre o fez com enorme talento, acima de quaisquer altos e baixos em sua carreira.

Almodóvar (de casaco azul) e a trupe de atores de seu décimo filme, ‘De Salto Alto’.

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